segunda-feira, 22 de junho de 2009

SARNEY NÃO É UMA PESSOA COMUM


21.06.09


Atos secretos
por Daniel Piza, Seção: política/ economia 08:20:06.


Estou mais uma vez com o presidente Lula: o senador José Sarney não é uma pessoa comum. Uma pessoa comum não tem ilha e mausoléu, não pertence aos imortais da ABL, não fica no poder por mais de quatro décadas sem se indispor com ninguém, não é detidamente resenhado por Millôr Fernandes, não tem jornais e rádios em todos os cantos de um Estado cujo IDH está entre os piores. Uma pessoa comum também não tem “atos secretos” para dar emprego público para os parentes de primeiro, segundo e terceiro graus e não tem a honra de ter presidido o Brasil num golpe da fatalidade e de ter levado a inflação aos três dígitos. E uma pessoa comum sabe o que entra em sua conta bancária, embora saiba melhor ainda o que sai e o que não entra.

E há quem continue chamando Lula de um político de esquerda... Quer posição mais favorável ao status quo do que as declarações dele em defesa de Sarney? O que ele disse, em outras palavras, é que os representantes do povo não são pessoas comuns, ou seja, do povo. São especiais, talvez eleitas pela voz divina (a voz do povo é a voz de Deus até terminar a contagem dos votos, depois deve se calar para a eternidade), e portanto merecem foro privilegiado, imunidade parlamentar, carteiradas, “praxes” que até ferem as leis que elas mesmas fizeram. Continuidade popular de FHC, Lula o imita na justificação verbal de alianças com o que há de mais retrógrado na mentalidade brasileira. Sarney, como foi ACM, é o facilitador dos projetos de permanência no poder.

Quem menospreza Sarney como autor comete um erro ao ignorar uma peça literária como o discurso que ele fez na quarta-feira. Primeiro, porque é um exercício de imaginação que deixa longe livros como Saraminda – aquela obra-prima que conta a história de uma mulher com mamilos de ouro em Serra Pelada. Segundo, porque são centenas de linhas com apenas dois argumentos, ou melhor, duas alegações: a de que ele não é culpado, e sim a instituição que ele preside com a tal “crise da democracia representativa” (tradução: todos nós do Senado temos rabo preso, atire a primeira pedra quem nunca pecou com o dinheiro público); e a de que ele “exige respeito” por sua história (e sua versão singular de como não colaborou com o autoritarismo militar). Todos os males que Sérgio Buarque identificou nas raízes do Brasil frutificam ali.

Por isso mesmo, os que apontam as oligarquias estaduais como barreiras para a democracia capitalista brasileira estão equivocados. Como o PT e o PSDB demonstraram, e como nossa vida cotidiana demonstra o tempo todo, o pensamento oligárquico – que confunde instituição e personalidade sempre que convém, que vê a crítica como um obstáculo em sua comunicação com os comuns, que se exime de qualquer erro e se gaba até do que não fez sozinho – vai muito além dos atos e palavras desses clãs de poder. Em graus diferentes, é aceito e reproduzido por quase toda a sociedade. Parafraseando Joaquim Nabuco sobre a escravidão, permanecerá por muito tempo como a característica nacional.

("Sinopse")

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