quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

AUSCHWITZ - NAZISMO - JUDEUS - HOLOCAUSTO

11:23 - Atualizado em 17/12/2009 - 12:06
Uma parte da minha família voltou a existir hoje
Em 1944, parte da minha família foi morta pelos nazistas em Auschwitz. Os exterminadores destruíram qualquer prova de que, um dia, eles existiram. Via internet, informei ao Museu do Holocausto as suas identidades. Decorridos 65 anos de suas mortes, meus parentes, hoje, saíram do limbo da inexistência
Peter Moon


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Na entrada de Auschwitz, a frase: "O trabalho liberta"A húngara Barbe Grosz tinha 18 anos quando viu sua mãe e seus quatro irmãos pela última vez. O encontro se deu em Paris, em 1938. Eles estavam reunidos para celebrar o casamento de Barbe com o ex-legionário estrangeiro, e também húngaro, Jules Antoine Lassu, então com 28 anos. Jules era cristão; Barbe e sua família, judeus. A família Grosz havia imigrado para a França em 1933, escapando da depressão mundial que atingiu de forma particularmente severa a Hungria. Não se adaptaram. Em 1938, resolveram voltar. A cerimônia de casamento foi também de despedida. Barbe e Jules iriam permanecer em Paris. Não sabiam que a despedida era para sempre. Depois do casamento, os pais de Barbe, Izabella e Ferencz (Francisco), e seus irmãos Karoy (Carlos), de 20 anos, Lajos (Luís), 13, Miklos (Miguel), 6, e a pequena Anna, de 4 anos, voltaram para Gyoma, uma pequena cidade no interior da Hungria.


EXTERMÍNIO
Câmara de gás em Auschwitz (foto: Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau)Em setembro de 1939, estourou a 2ª Guerra Mundial. O governo húngaro aliou-se aos nazistas e imediatamente começou restringir os direitos dos 650 mil judeus húngaros – um décimo da população. Em junho de 1940, os nazistas entraram em Paris - e começaram a fazer o mesmo com os 350 mil judeus franceses. Na condição de judia, Barbe tinha que costurar nas roupas uma estrela de David. Ela se recusou. Fez bem. Durante a ocupação, todos os que ostentaram a estrela de David, mais cedo ou mais tarde desapareceram. Em 1942, Barbe deu à luz a uma menina franzina chamada Sylviane Denise, minha mãe. Elas sobreviveram.
A guerra na Europa terminou em maio de 1945, quando os soviéticos tomaram Berlim. Em agosto, Jules foi à Hungria à procura dos parentes. De sua família, que vivia em Budapeste e era católica, quase toda sobreviveu. A pequena família de Barbe, não. Os Grosz moraram em Gyoma até março de 1944, quando foram deportados para Auschwitz, o campo de extermínio onde foram assassinados e viraram cinza.

Em 1946, Bárbara, Júlio e Denise deram as costas ao Velho Mundo e embarcaram para uma nova vida no Brasil. Fixaram-se em São Paulo. Meu querido avô e eterno herói, Júlio morreu em 1995, com 85 anos. Bárbara deve completar 90 anos no próximo dia 6 de janeiro. Ela está lúcida, é bem-humorada e tem cabelos branquinhos que lembram um tufo de algodão-doce. Bárbara é a típica avozinha que todos gostariam de ter. Foi ela quem me contou, quando eu ainda era adolescente (tenho 46 anos) a história do desaparecimento da minha bisavó e meus tios-avós no Holocausto. No entanto, só hoje descobri o desaparecimento da minha família não foi apenas físico. Foi absoluto. Não bastou aos nazistas matá-los. Eles foram obliterados da história. É como se jamais tivessem existido – a não ser nas lembranças de minha avó.

Esta revelação aconteceu hoje, meio que por acaso. Estou terminando a leitura de Quem Escreverá nossa História? Os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, de Samuel D. Kassow (Editora Companhia das Letras), para escrever uma resenha que sairá na próxima edição de ÉPOCA, que vai às bancas no sábado, 19 de dezembro. Os arquivos do Gueto de Varsóvia são milhares de documentos que foram enterrados antes da destruição do gueto, em 1943, e desenterrados entre 1946 e 1950. Eles contam como viveram e morreram os 400 mil judeus poloneses que lá foram confinados. Ler estes documentos é ter acesso à voz daqueles que desapareceram, é ouvir a versão dos mortos. Sobretudo, é conhecer nomes de pessoas que um dia existiram, mas cujos registros foram destruídos - não fosse pela existência destes preciosos arquivos.

“Será que há registros dos membros da minha família que morreram no Holocausto?”, pensei. A resposta deveria estar no site do Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém. Usando o mecanismo de busca do Yad Vashem, procurei por todas as variações possíveis do nome de minha bisavó: Izabella, Izabela, Isabela, Isabella... Schwatz, Schwarcz, Schwarz... Grosz, Gross... Nada. Não havia registro algum nem dela nem de seus filhos. A “Solução Final” implementada por Adolf Hitler para exterminar os judeus da Europa foi tão eficaz que incinerou os corpos e os registros da existência de metade dos 6 milhões de judeus assassinados. É o que informa o Yad Vashem. Em outras palavras, 64 anos após o fim da 2ª Guerra, sabe-se apenas os nomes de três milhões de judeus mortos. Os outros três milhões, entre eles a minha família, para todos os efeitos jamais existiram. Eles são um número, um número estarrecedor, porém só um número - sem nome nem rosto nem história.

Minha família, não mais. Liguei para a minha avó e pedi para que ela soletrasse as grafias em húngaro dos nomes de sua mãe e seus irmãos. Perguntei sobre datas e locais de nascimento. Felizmente, Bárbara lembra de tudo. Com as informações em mão, submeti via Internet ao Yad Vashem cinco documentos, onde testemunho que, um dia, existiram cinco pessoas, Izabella e seus filhos Karoy, Lajos, Miklos e Anna. E que eram a minha bisavó e meus quatro tios-avós. Recebi do Yad Vashem, por email, cinco documentos no formato pdf que logo imprimi. Eles são numerados de 48.412, de minha bisavó Izabella, até 48.416, da pequena tia Anna, que tinha apenas 10 anos quando entrou na câmara de gás.

Estes números não são certidões de óbito. São atestados de vida. Eles atestam que minha família existiu. Minha avó está no fim da vida. Quando morrer, a memória de seus entes queridos partirá com ela. No entanto, desde hoje, no Yad Vashem, eles voltaram a viver.

Pedro de Luna
(Peter Moon é meu pseudônimo como jornalista)




PS (Post Scriptum):
Quem muito acertadamente percebeu que eu omiti as informações sobre o paradeiro de Ferencz (pronuncia-se “férensi”), o meu bisavô, aí vai à resposta: ele sobreviveu. Em 1945, antes do fim da guerra, meu bisavô foi libertado pelo Exército Vermelho. Ele sabia que a família estava morta – o que incluía a filha Barbe, que morava na França.

No fim de 1945, o Leste europeu era uma encruzilhada com milhões de refugiados tentando retornar aos seus lares. A casa de meu bisavô era no interior da Hungria. Se morasse em Budapeste, talvez tivesse se encontrado com o meu avô Júlio que, como disse, visitou a cidade naquele ano à procura de parentes.

Passaram-se 20 anos. Em 1965, do outro lado da Cortina de Ferro, dois amigos se encontraram em Budapeste e começaram a conversar. Durante a conversa, papo vai, papo vem, as fichas começaram a cair. Um dos interlocutores conhecia a família de meu avô Júlio, que morava em Budapeste. Ele sabia que meus avós viviam no Brasil. O outro conhecia um senhor judeu chamado Ferencz Grosz, que vivia na pequena Gyula, na fronteira com a Romênia. Ferencz havia se casado novamente e formado nova família. Mas Ferencz era o pai de Barbe.

Eu, obviamente, não lembro de nada disso. Tinha apenas dois anos. Mas sei que em 1965, minha avó recebeu uma carta do pai, que ela não via desde 1938 e acreditava estar morto há mais de 20 anos. Minha avó viajou de navio para a Europa, para rever o pai. O mesmo caminho fez minha mãe. Em 1970, ela foi a Budapeste conhecer o avô. “No começo, os dois tiveram um estranhamento, ficaram se olhando sem saber o que fazer”, contou meu pai, que presenciou o encontro. “Mas, em pouco tempo, eles se abraçaram e começaram a chorar, o avô e a neta”.

Meu bisavô morreu em 1974. Ele tinha 80 anos. Deve ter morrido feliz.

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