sábado, 10 de outubro de 2009

O ENEM LEVOU BOMBA ANTES DA PROVA




O Enem levou bomba antes da prova
As provas do Enem foram entregues na casa dos diretores de escolas cinco dias antes de sua aplicação. Essa falha pode estar na origem do vazamento que provocou o cancelamento do maior vestibular do Brasil
Ana Aranha, Mariana Sanches e Thiago Cid

Uma das mais ousadas propostas do governo Lula para a educação, o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) poderia entrar para a história como o primeiro vestibular unificado capaz de avaliar todos os candidatos ao ensino superior do país. A intenção do novo Enem é reduzir a maratona de estudos para diferentes provas e mudar o currículo das escolas para induzir um ensino com mais raciocínio e menos decoreba. Mas, devido a falhas no sistema de segurança e na distribuição das provas, virou inquérito policial na semana passada. O novo Enem já entrou para a história como o primeiro e maior exame nacional a ser cancelado dois dias antes de sua aplicação.

O cancelamento do Enem, que vai selecionar estudantes para mais de 80 universidades do país, ocorreu depois que um grupo tentou vender, por valores entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão, o caderno de questões a pelo menos cinco veículos de comunicação. O vazamento obrigou também a Polícia Federal (PF) a abrir uma investigação. Dois delegados da superintendência da PF em São Paulo, onde foi descoberta a fraude, foram escalados para tentar identificar quem conseguiu furar o esquema de segurança do exame. Enquanto a PF tenta descobrir os responsáveis pelo vazamento, ÉPOCA apurou que o sistema contratado pelo Ministério da Educação (MEC) para imprimir e distribuir as provas, a cargo do consórcio Connasel, formado por empresas de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, está cheio de falhas que facilitam a quebra de sigilo das provas.

Uma das principais ocorreu na fase de distribuição das provas. O consórcio entregou as provas nas casas dos diretores e vice-diretores das escolas e faculdades responsáveis pela aplicação do Enem – que estava previsto para ocorrer nos dias 3 e 4 de outubro. A distribuição nas casas começou a ser feita cinco dias antes da realização do exame. Uma vice-diretora de uma escola pública e o secretário-geral de uma universidade particular de São Paulo relataram o procedimento a ÉPOCA, que foi confirmado por Cibele Pereira, uma das coordenadoras de distribuição do Connasel.

Com esse sistema, as provas ficaram armazenadas sem nenhum tipo de proteção profissional e sujeitas a furtos e extravios por qualquer pessoa que tivesse acesso à casa dos diretores e vice-diretores. Entre as tarefas desses diretores estava também o transporte das provas até o local do exame, no próprio carro e sem nenhum tipo de escolta. “É um procedimento inédito na história do Enem e absurdo”, afirma Gisele Gama, consultora do Instituto de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), órgão do MEC responsável pelo Enem. “O exame tem de ser entregue, com escolta, no momento da aplicação ou na véspera.”

"É um procedimento inédito na história do Enem e absurdo"
GISELE GAMA, consultora do Inep ao comentar
a entrega do Enem em domicílio
O amadorismo do sistema de distribuição fica mais evidente quando se sabe que as empresas adotaram escolta armada, com carros-fortes, para entregar as provas nas casas dos diretores. Pelo contrato assinado pela Connasel com o MEC, as empresas são responsáveis “por manter sob rigoroso controle e sigilo todos os dados, informações e documentos, responsabilizando-se por sua adequada guarda e transporte”. Procurado por ÉPOCA, o Connasel não se manifestou até o fechamento desta edição. O MEC, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que recebeu denúncias de que o mesmo procedimento fora adotado na Bahia e que estava em busca de esclarecimentos junto ao consórcio.

O Connasel é formado por três empresas sem experiência na preparação de exames de larga escala, como o Enem. A líder do consórcio é a Consultoria em Projetos Educacionais e Concursos (Consultec), da Bahia, responsável por toda a logística. O Instituto Nacional de Educação (Cetro), de São Paulo, ficou responsável pelas provas a serem aplicadas nas penitenciárias. A Fundação de Apoio à Pesquisa, Ensino e Assistência (Funrio), ligada à Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assumiu a tarefa de montar e distribuir as provas para todo o país. Antes, as três empresas haviam atuado principalmente em concursos públicos de pequena dimensão.

A escolha do Connasel como responsável pela impressão, distribuição e aplicação do Enem ocorreu depois de um processo atribulado. Líder do consórcio que aplicava o Enem havia 11 anos, a Fundação Cesgranrio retirou-se da concorrência. O motivo da desistência, segundo informou a fundação, foi que “uma prolongada disputa na licitação acabaria por diminuir, ainda mais, o prazo já exíguo para a realização (do Enem) , tornando sua aplicação inexequível”. Segundo uma fonte próxima ao MEC, a saída da Cesgranrio da licitação teria sido precedida por uma negociação mediada pelo ministério.

A confusão começou em maio. Na ocasião, o ministro da Educação, Fernando Haddad, anunciou mudanças profundas no Enem ainda para este ano. O exame deixou de ser uma avaliação do ensino médio para ganhar o caráter de instrumento de seleção dos universitários. O número de questões praticamente triplicou – de 63 para 180 –, e a prova passou a exigir maior conhecimento de conteúdo. Enquanto essas mudanças eram providenciadas pelo Inep, o MEC ainda tinha de negociar a adesão das universidades, que têm autonomia para manter seus vestibulares. Tudo isso atrasou a contratação das empresas terceirizadas. “Foi um processo atropelado. Essas mudanças deveriam ter sido anunciadas um ano antes de sua aplicação”, afirma Maria Helena Guimarães de Castro, presidente do Inep no governo Fernando Henrique Cardoso e secretária estadual de São Paulo até o início deste ano.

O consórcio de empresas responsável pelo Enem não tem
experiência na área e foi escolhido depois
de um processo atribulado
Na madrugada da quinta-feira 1o de outubro, quando o Enem foi cancelado, todos os cadernos de questões já estavam impressos, a um custo de R$ 36 milhões, e, em parte, distribuídos. O ministro Fernando Haddad tomou a decisão depois de ser alertado do vazamento por uma repórter do jornal O Estado de S. Paulo. O jornal havia sido procurado por dois homens que pediam R$ 500 mil em troca de uma cópia da prova. Um dia antes, a reportagem de ÉPOCA também fora procurada por dois homens com a mesma intenção, que marcaram um encontro no estacionamento de uma lanchonete perto da redação da revista.

No local, um homem de cavanhaque preto, vestindo jeans e camiseta, se apresentou como Luciano. Afobado, ele disse que tinha uma cópia do Enem, pela qual uma emissora de TV teria oferecido R$ 1 milhão. Depois de ouvir que ÉPOCA não paga por informações, o homen insistiu que a “mercadoria” valia muito dinheiro. Quando o repórter pediu para examinar a prova, o homem negou que tivesse uma cópia no local e reafirmou que só mostraria mediante pagamento. Ele estava acompanhado por um homem mais jovem, de olhos claros e que usava boné, calça larga e fones de ouvido. O portal de notícias R7 e o jornal Folha de S.Paulo também relataram ter sido procurados. Ao final do encontro com o repórter de ÉPOCA, um dos homens fez piada sobre o sistema de segurança da prova: “E é isso que eles querem que substitua o vestibular!”.

Apesar das falhas, o ministro Fernando Haddad diz que o consórcio Connasel deverá continuar como responsável pelo Enem deste ano, cuja nova data de aplicação ainda não foi marcada. Até agora não se sabe quem vai arcar com o prejuízo do dinheiro gasto na impressão e distribuição dos 4 milhões de provas que foram invalidadas. Segundo o contrato, o consórcio depositou, como garantia pela qualidade do serviço, uma quantia de R$ 5,8 milhões. Esse dinheiro pode ser sacado em caso de quebra do contrato. O prejuízo não é só financeiro. O vazamento das provas vai tumultuar a vida de mais de 4 milhões de alunos e atrasar o calendário de 88 instituições de ensino superior, além de jogar suspeitas sobre a credibilidade de uma iniciativa que pretende ser inovadora.

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