quinta-feira, 2 de julho de 2009

RECEITA ANALFAMÉDICA / HORA DE ACABAR COM OS GARRANCHOS

Qua, 01 Jul, 08h00

Dr. Alessandro Loiola*/Especial para BR Press


(BR Press) - Reza a lenda que um médico, pesquisador da Unicamp, decidiu fazer um experimento para testar o profissionalismo dos atendentes de farmácia: pegou seu receituário em papel timbrado e entregou ao filho de 03 anos para que o menino fizesse alguns rabiscos. Dirigiu-se à farmácia mais próxima e, sem dizer uma única palavra, entregou o receituário rabiscado ao balconista.

O balconista olhou certo, olhou torto, olhou contra a luz e pediu licença. Cinco minutos depois, voltou com uma caixa de antibiótico, dois antiinflamatórios e disse, apontando na receita:

- O senhor vai nos desculpar, mas não trabalhamos com este analgésico aqui ó...

Piadas à parte, e, deixando de lado a ganância do balconista em faturar seu bonificado, a conclusão da pesquisa poderia ser que a má caligrafia dos médicos é quase um fato inexorável da natureza. "O céu é azul, a água é molhada e a letra do meu médico... visshhmaria!, nem te conto!".

Hieroglifos

Depois de tantos anos de estudos, alguns médicos ainda não conseguiram alfabetizar sua letra e continuam emitindo prescrições "analfamédicas" - aqueles papéis contendo algo que deveria ser uma receita ou um laudo, mas guardam uma semelhança muito grande com rabiscos de crianças pré-escolares ou registros gráficos de uma crise convulsiva. É sério. Conheço colegas cuja caligrafia seria um desafio respeitável até para arqueólogos experientes, acredite.

Mas aqui vai a boa notícia do dia: você não precisa enfrentar nada disso. Não precisa e não deve! Quer um exemplo? Pois voltemos ao ano de 1995, nos Estados Unidos, um ano de pouca sorte para o texano Ramon Vasquez - e talvez pior ainda para o seu cardiologista, Dr. Ramachandra Kolluru.

Aos 42 anos de idade, Ramon faleceu vitimado por um infarto cardíaco e a família imediatamente processou Dr. Kolluru. O motivo: devido à receita "analfamédica" do Dr. Kolluru, Ramon havia passado suas duas últimas semanas utilizando doses elevadas de Plendil (um remédio contra hipertensão arterial) quando, na verdade, deveria estar tomando Isordil (um medicamento que promove dilatação das artérias coronárias, diminuindo o risco de infarto cardíaco).

Em 1999, o veredito: Dr. Kolluru foi condenado a pagar uma indenização de US$ 225 mil à família do falecido. O farmacêutico responsável pela entrega equivocada do remédio foi multado em outros US$ 225 mil. E esta ação entrou para a história como a primeira condenação de um médico nos EUA por negligência devido à má caligrafia.

De acordo com o Federal Drug Administration (FDA), órgão dos Estados Unidos responsável pela fiscalização dos remédios naquele país, 1,3 milhão de americanos são prejudicados a cada ano em decorrência de erros tais como tomar doses incorretas ou fazer uso do medicamento errado. Um estudo publicado no renomado jornal médico The Lancet estimou que, nos últimos 20 anos, o número de mortes causadas por confusões na caligrafia aumentou 250%, ultrapassando 7.000 casos por ano.

Apesar de toda sua gravidade, este é um problema de fácil solução. Médicos de caligrafia ruim podem datilografar suas prescrições, utilizar um computador com impressora, comprar um daqueles cadernos com linhas azuis e fazer aulas de reforço no pré-primário ou, simplesmente, caprichar um pouco mais na qualidade da letra.

Vale lembrar que, em 1988, o Conselho Federal de Medicina do Brasil oficializou a má caligrafia como antiética e um exemplo de má-prática médica que deve ser coibida a todo custo (Código de Ética Médica, resolução n° 1246/88, artigo 39).

Todo paciente tem o direito de receber uma receita legível. Se o seu médico mostra preocupação em ser compreendido, parabéns para ele. Se este não for o caso, e se ele se recusar a escrever de modo compreensível, lembre-o de que pode ser denunciado e até mesmo penalizado pelo Conselho Regional de Medicina do seu estado.

A partir de hoje, diga "sim" à sua saúde e NÃO à receita "analfamédica".

*Dr. Alessandro Loiola é médico, escritor e palestrante. Autor de, entre outros livros, "Para Além da Juventude - Guia para uma Maturidade Saudável"
(Editora Leitura). Fale com ele pelo e-mail aloiola@brpress.net

Hora de acabar com os garranchos

Roberto Carvalho

Não é raro encontrar, em farmácias, quem já tenha retornado sem o medicamento pela impossibilidade de o atendente, mesmo farmacêutico, traduzir os traços e rabiscos que normalmente figuram acima do carimbo e da assinatura, ainda mais ilegível, dos diversos especialistas da área médica. O hábito de o médico não escrever de forma legível vem de uma tradição antiga. Desde a época da faculdade, o acadêmico faz suas anotações em bancos ou cadeiras sem suporte, até mesmo nas enfermarias ou ambulatórios.

Os professores da atual geração de médicos – catedráticos – não tinham, em sua maioria, uma boa letra, o que passava a impressão de que a caligrafia legível não tinha tanta importância. Muitas informações e assuntos dados em aula eram passados de uma maneira rápida, não existindo os materiais didáticos que conhecemos hoje, como internet, projetores, vídeos etc. Assim, os alunos, na fase de aprendizado da parte clínica, que frequentar os hospitais, ambulatórios e postos de saúde e tinham de fazer observações clínicas e receitas orientadas pelo “chefe” de plantão. Nos pronto-socorros, havia a necessidade de preencher o prontuário de forma rápida e ágil.

Apesar disso, todos estes fatos não justificam, de maneira alguma, que o médico tenha uma letra ilegível. De acordo com Lei Estadual 13.556, as receitas médicas e odontológicas devem ser digitadas em computador ou escritas manualmente, em letras de imprensa ou caixa-alta, nos postos de saúde, hospitais, consultórios médicos e odontológicos da rede pública e privada. A medida visa evitar riscos de equívocos praticados por farmacêuticos, enfermeiros, entre outros profissionais de saúde que, pelo fato de não entenderem a caligrafia de um determinado médico, fornece, em muitos casos, um medicamento diverso do prescrito ocasionando, de certa forma, risco à saúde e à vida da população. Recentemente, a Vigilância Sanitária de Londrina, no norte do Paraná, multou três médicos por prescreverem receitas com letra ilegível para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Cada profissional recebeu multa de R$ 2 mil, podendo apresentar defesa por escrito em 15 dias.

Entretanto, seria utópico exigir que um médico, que atende vários clientes diferentes em posto de saúde, em um período de tempo muitas vezes restrito, faça uma receita por computador. O que então poderia ser feito? Uma solução seria, ainda na época da faculdade, aconselhar os futuros médicos da importância de se ter uma letra legível, com o risco de punição, caso a exigência não fosse cumprida. Em casos especiais, oferecer, ainda, aulas de caligrafia e, em uma avaliação final do curso, checar a legibilidade da letra do aluno, que consta no Código de Ética Médica

Esta sugestão poderia, sim, melhorar um pouco a letra de médicos, estudantes e residentes, mas não de forma definitiva. Aplicar multas, com um valor significativo, reverteria este quadro de forma muito mais visível, fazendo com que este profissional pensasse duas vezes antes de fazer uma receita ilegível. Mais correto ainda, seria reverter esta cobrança em prol de projetos beneficentes, uma medida em que todo mundo sairia ganhando: tanto os médicos, que se veriam livres da polêmica, quanto farmacêuticos e pacientes, que teriam a certeza do uso correto da posologia.


Roberto Carvalho é médico cirurgião cardiovascular do Hospital Santa Cruz, de Curitiba, e integrante da Academia Paranaense de Medicina.

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